Segue uma descrição resumida do texto, PUEBLA: uma voz, profética em favor da celebração e da vida, do Doutor em Teologia, Luiz Fernando Ribeiro Santana, publicado na Revista Atualidade Teológica nº 62/2019 – Departamento de Teologia da PUC-Rio.
Introdução
Ano de 2019, quarenta anos da publicação do Documento da III Conferência Geral do Episcopado latino-americano, na cidade de Puebla de Los Angeles, México, realizado nos dias 28/jan a 13/fev de 1979, com o tema: “A evangelização no presente e no futuro da América Latina”.
A Conferência, foi convocada pelo Papa Paulo VI, mas, devido ao seu falecimento, a mesma foi adiada e quem a inaugurou, foi o recém-eleito Papa João Paulo II, que em seu discurso na abertura, sugeriu aos bispos seguirem os pontos de partida das discussões: a) conclusões de Medellin (1968); b) propostas da Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi de Paulo VI (1975).
Partindo do parágrafo 917 do Documento de Puebla, que consta da III parte do Documento, onde fala sobre a evangelização na Igreja da América Latina, sob a perspectiva da comunhão e participação, o autor destaca o seu terceiro capítulo, intitulado: “Liturgia, oração particular, piedade popular”.
É como se o povo de Deus de nosso continente, representado pelos seus pastores, movido pelo Espírito Santo, bradasse o que já havia se pronunciado no Vaticano II (Sacrosanctum Concilum, 10: “A liturgia é o cume para o qual tende toda a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte que promana sua força”.
Por uma autêntica teologia litúrgica
“É necessário que toda esta renovação seja orientada por uma autêntica teologia litúrgica” (Puebla 918). Seria como se dissesse, que a suada renovação conquistada pelo Concílio Vaticano II, só poderia ser implantada, experimentada e vivenciada em profundidade na América latina, graças a um sério e incansável projeto de formação cristã, com a primazia da teologia litúrgica.
Segundo S. Marsili, a celebração litúrgica é, por excelência, o locus onde a história da salvação continua o seu trajeto de revelação até a consumação dos tempos. É da celebração do mistério pascal que a própria Igreja nasce, é construída e se desenvolve. E, acrescenta Marsili sobre a importância de um íntimo diálogo entre a teologia bíblica e a teologia litúrgica.
Desde modo temos teologia litúrgica, quando o falar de Deus se fundamenta na sacramentalidade da revelação. Pois, revelação não é só manifestação de uma verdade comunicada por Deus, mas é uma entrega que Deus faz de si mesmo em vista da salvação do homem, para que o homem participe da vida de Deus. Então, essa revelação alcança o homem pela via sacramental, cujo símbolo-sacramento de Deus por excelência na sua humanidade é o próprio Cristo.
Teologia litúrgica é a teologia da presença e da ação de Deus na história da salvação humana, ou seja, é a experiência cristã do mistério do culto celebrado como momento histórico da salvação. Cristo, morrendo, destruiu a nossa morte e, ressuscitando, restaurou-nos a vida; e, do lado de Cristo morto na cruz, brotou o admirável mistério da Igreja. Essa, obra realizada por Cristo continua na Igreja e se coroa na Liturgia. É Cristo presente à sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas (Sacrosanctum Concilum 5-7).
A guinada copernicana feita pelo Concílio Vaticano II em sua abordagem litúrgica foi precisamente o resgate da liturgia a partir de sua natureza, do seu mistério. É, por excelência, o lugar e o momento onde a história da salvação continua progressivamente o seu desdobrar até o eschaton.
Puebla se enche de esperança.
A dinâmica trinitária do mistério da liturgia
O parágrafo 917 do Documento de Puebla é uma autêntica teologia litúrgica, para que se dê uma profunda renovação na vida litúrgica da Igreja Latino-americana. Assim, diz o parágrafo: “o Pai, por Cristo e no Espírito, santifica a Igreja e, por ela, o mundo; mundo e Igreja por sua vez, por Cristo e no Espírito, dão glória ao Pai”. Vale dizer, que essa proposição teológico-pastoral, parte de um dado litúrgico, fruto da experiência de uma Igreja orante.
O timbre trinitário de Puebla 917, visceralmente marcado por uma dinâmica interna (ad intra) e externa (ad extra), nos leva ao profeta, em Is 55,10-11: “Como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam sem terem regado a terra […], tal ocorre com a Palavra que sai de minha boca: ela não torna a mim sem fruto; antes, ela cumpre a minha vontade e assegura o êxito da missão para a qual a enviei”. Com efeito nos diz a Sacrosanctum Concilum, 5: “a obra da salvação idealizada por Deus realizou-se cabalmente pelo mistério pascal de Cristo em virtude da potência do Espírito Santo; desse engenhoso desígnio, brotou o admirável mistério da Igreja”.
É a entrega de Deus, uma kénose movida unicamente por amor e total gratuidade. E, segundo as leis da revelação bíblica, Deus, na manifestação e entrega que faz de si mesmo em forma de “catábase” (descida), somente por uma resposta livre pode ser acolhido e aceito. Acolher a catábase revelatória de Deus é estarmos dispostos a responder a ela, portanto, descobrirmo-nos capazes de “anábase”(subida). Então, se estabelece o equilíbrio “catabático-anabático”, daí se compreende a natureza da liturgia, como diálogo entre Deus e o ser humano.
O Deus que se revela na historia salutis quis se fazer “história” para poder contar com suas criaturas como partner de uma aventura, uma “dança de amor”. Dessa forma, a descida de Deus ao ser humano (dimensão catabática ou soteriológica) torna possível a ascensão humana no louvor, na invocação, na celebração do amor (dimensão anabática ou latrêutica).
A teologia litúrgica, por sua natureza é também antropológica, mostrando que a relação de Deus com os homens e mulheres, é sempre dialógica. A teologia litúrgica conciliar pousa o seu olhar na “plenitude dos tempos”, Kairós em que Deus, finalmente, condensa sua pedagogia catabática com a catábase, agora do seu amado Filho.
A anábase do Ressuscitado ao Pai, a sua Ascensão, torna-se, uma epíclese viva: “Eis que eu vos enviarei o meu Espírito”. Com o evento Pentecostes, dá-se, então, a catábase do Espírito de Deus. Com ela, manifesta-se o mistério da Igreja, que será os “últimos tempos” da economia salvífica, ou seja, o tempo da Igreja.
Com a catábase de cada uma das pessoas divinas, todas elas envolvidas no “trabalho” (leitourgia). E, sob o impulso do Espírito Santo, homem e mulher, descobrem sua vocação de “liturgos”. “Exorto-vos… a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual” (Rm 12,1).
O desejo e a obra do Espírito no coração da Igreja é que vivamos da vida de Cristo ressuscitado. Onde há verdadeira cooperação (sinergia), que vem a ser o equilíbrio catabático-anabático: realidade, caracterizada pela fé cristã no culto prestado a Deus. Este é o selo de autenticidade da celebração cristã, pois toda ela, é convergente “ao” Pai, “por” Cristo “no” Espírito Santo. Na dynamis do Espírito, a Igreja se associa ao louvor prestado a Deus, travando com ele uma experiência de vida e comunhão, pois “O Pai, por Cristo, no Espírito, santifica a Igreja e, por ela o mundo”.
“Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus pai todo poderoso, na unidade do Espírito, toda honra e toda a glória, agora e para sempre”. Este é o clímax de cada anáfora eucarística, onde, a Igreja se une ao cosmos e a toda criação para glorificar o seu criador e redentor, pois a “Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação”
Mistério celebrado e evangelização em Puebla
A principal proposta de Puebla: foi a “evangelização de nosso continente”, onde em sua parte introdutória, faz um perene eco do querigma que sempre dinamizou a missão apostólica da Igreja. Tendo como impulso evangelizador, a resposta concreta ao mandato do Senhor aos seus discípulos – “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos…” (Mt 28,20). Brilha, no documento o binômio “evangelização-liturgia”, onde a liturgia, segundo o Concílio Vaticano II, é o “cume” e “a fonte” da vida da Igreja (Sacrosanctum Concilium,10).
Anunciar Jesus Cristo e o seu Evangelho, princípio e meta da evangelização, tem sido também um dos principais objetivos da incansável missão do Papa Francisco: “Alegria do Evangelho enche o coração e a vida daqueles que se encontram com Jesus”. E, três anos depois, a Igreja no Brasil, em suas Diretrizes Gerais da ação evangelizadora, volta a tratar o tema, com uma tônica litúrgica, conforme orientação de Puebla, já mencionada no Concílio Vaticano II: “A liturgia é o ápice para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte onde emana toda a sua força”.
Assim, Puebla nos intui a este entendimento, onde a liturgia deve ser considerada como fundamento da evangelização, nos colocando no anúncio do mistério de Cristo: “anunciamos, Senhor a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição”.
Conclusão
Puebla vive! (J. Comblin). Na quinta parte das conclusões de Puebla é enfatizado o reconhecimento que a Igreja latino-americana deseja caminhar sob a ação do Espírito Santo. Os pastores afirmam optar por uma “Igreja-sacramento de comunhão”, que se constrói e se renova a cada dia no mistério da liturgia. “A Igreja é sacramento de Cristo, cujo carisma e missão é comunicar aos homens a vida nova, inaugurada pelo Senhor ressuscitado” (Puebla,922).
Assim, nos reconhecemos povo de Deus, inserido num continente e numa história, capaz de unir-se a toda a Igreja, e, nela e com ela, numa estreita comunhão cósmica, com o mundo, por meio de Cristo, dinamizado pelo Espírito, para a glória ao Pai!
Comente o que achou